terça-feira, 27 de maio de 2008

O Pierrô fugaz

Lembro-me do firmamento. Naquela noite a divisão dele em miúdas partes embelezava a rua em meio à chuva colorida de confetes e serpentinas, e essas mesmas serpentinas divorciavam as estrelas para acertarem alguma cabeça distraída.
Passou-se não muito tempo dês daquele dia em que descobri o lado posterior da vida. Foi agora, no carnaval de 57. Ano passado. Eu, com minhas vinte e poucas primaveras dançava despreocupadamente ao som das marchinhas, enquanto só, conjecturava desatinos e sonhos de garota.
Era uma verdadeira festa posta nas ruas. Todas elas entupidas de sambistas, estrangeiros, malandros, brotos e lança-perfumes. Alguns sorrindo, alguns pulando, alguns sorrindo e pulando, outros – ao sabor da festa – arrumavam brigas, sentenças e muita bebida.
Como em todo carnaval, por trás de um solitário triste há sempre um par alegre. Pensava eu que para isso havia o carnaval: enquanto uns poucos esbanjavam e ostentavam afeto, afago e carinho, outros, menos sortudos ou bonitos, cobiçavam a cabrocha do próximo ou se ocupavam em desperdiçar piropos a esmo afim de conquistarem algum broto e arrebatá-las num só beijo.
Tudo isto era verdade, digo-vos: as cabrochas, as bebidas, os lança-perfumes e a cobiça do próximo ao próximo. Porém, como em todos as festas, eu estava e continuava só, sem próximo, sem par para dançar ao relento... aspirando o pierrô e sonhando-me columbina.
Tudo mudou naquela noite. A benção e o milagre dos céus que pedi foi cedido e acertou-me a nuca com prazer! uma serpentina estranhamente negra quicou-me e rolou chão adentro. Obviamente não compliquei-me a pegá-la ou reclamar ao dono, afinal, serpentinas são feitas para viagens, divórcios e colisões.
Nem sequer preciso foi um olhar de rabo-de-olho à minha traseira para que um rapaz, um pão para ser sincera (que me perdoem os leitores e leitoras dignos de respeito), mirasse-me e viesse ao meu encontro: moço pardo, boa estatura, dono de olhos verdes, cabelo escuro escondido por apetrechos, rosto fino e voz doce. Parecia-me cordial e ingênuo pelo olhar – que lambia-me sem cessar – Perdoe-me, mil perdões, dizia o homem de mira, Não foi proposital, dama – e continuava abstendo-se do silêncio para desculpar-se.
Acima de tudo, seu respeto e educação surpreenderam-me e surpreendem até hoje quando eu me lembro. Seu tom de voz era macio e gentil enquanto suas palavras, seletas. Fui de recíproca educação a ele, respondendo que tudo bem, para não se preocupar. Assuntos alfim pernoitaram nossos ouvidos ganhando espaço na cabeça e coração.

Será este meu pierrô? Indagava-me enquanto ele me contava sobre seus devaneios e boas ações. Uma chance destas eu não poderia imaginar desperdiçar, o possível homem da minha vida, e de olhos verdes!
Não quis me revelar sua natalidade nem idade. Eu conjecturava sobre possíveis meios futuros de expôr seus dados tão sigilosos.
Um banho de lua arrastou-nos em direção à Ipanema e seu mar de espelho. Instalamo-nos lá, a sós, não sem antes o cavalheiro buscar seu violão em casa. Aquela noite especial, juntos à fogueira, à lua, ao violão e nós dois: eu de cócoras sobre a areia fria de ipanema degustando os acordes do afinado rapaz, ele, que por talento, assassinava meu tédio. Galanteador, recitou-me uns versos do poetinha Vinicius de Moraes, entre outros apaixonados.
Pela primeira vez na vida, sentia-me completa, apaixonada reciprocamente, dominada pelo rapaz que abriu-me o coração retirando as antigas mágoas e tristezas, expulsando-me da dor do amor demais de um só viés. A solidão por mim chorada toda noite foi estirpada de meu ser - lúdico - sem mais sofrer sem mais agudas dores.

Tocava extremamente bem seu violão, e eu, sentia-me à vontade de sua voz que calou-se subitamente ao toque de um lábio feminino. O beijo parou o tempo e, todas as ondas que o mar rebentava, mudas ficaram.
Permanecemos na areia por mais alguns instantes. Conversávamos bastante, trocávamos carícias e seguranças, enfim, coisas triviais de casais. Recitou-me alguns versos a mais do poetinha e calou-se por minha boca um punhado de vezes.
Ficou decidida a retirada da praia para a casa do moço. Eu estava totalmente hipnotizada, nunca em sã consciência pecaria em demasia assim, imagina! Onde já se viu dar-se por completo a um estranho a primeira noite de ósculos tímidos?
Mudamo-nos dos pequenos e rotundos minerais da praia para caminharmos em direção à sua casa:
ficava não muito distante, há uns 800 metros de pernada em relação a onde namorávamos.
Ipanema estava graciosa aquela noite e dobrávamos os joelhos a lentos movimentos. Havia poucos praieros no instante, porém, lembro desta mesma meia dúzia de gatos pingados mirando-me por um bom tempo de maneira estranha e assutada, desliguei-me, eram indiferentes estes olhares para mim no momento. Chegamos a seu domicílio.
O pierrô parecia inquieto e nervoso, desconsiderei. Perguntou se eu beberia alguma coisa, um rum, gim, licor, vinhos antigos, boas safras... irresistivelmente não recusei o último e ficamos na sala, tímidos, saboreando o sangue de cristo.

Recordo-me ainda daquele diálogo que me esbranquiçou até o mais extremo apêndice do corpo e me roubou o corar da face, transformando-me numa gueixa de caracóis.
Suas confissões sigilosas que dizia guardar a sete chaves foram inicialmente desacreditadas por mim, porém, com o desenrolar da situação ví-me em meio à mais difícil noite de minha vida: a verdade!
O afastamento, o pranto, o coração descompassado, aquelas dezenas de minutos da revelação mórbida. Entre carícias por mim cedidas, o pierrô galanteador estancou nossos roçados e lacrimejando disse não poder mais, não ter mais forças. Seguido de tremidão, cortou-se das falas e ajoelhou-se ao chão pedindo desculpas, pedindo desculpas, pedindo desculpas....

Desconcertada fiquei ao ver seus cabelos e mãos cada vez mais translúcidos, a cada segundo que passava. Tentei em vão agarrar seu casaco, seus dedos, sua boca, sua alma, intangíveis às mãos carnais de uma mortal. Aos gritos choradamente mútuos o que parecia-me o grande arranjo e felicidade que eu jamais encontraria novamente desvaneceu-se por completo deixando apenas a dor e a saudade.
Não contive-me de trizteza aquela noite, e, fortemente desiludida e desnorteada, resolvi pernoitar o recinto, afim de um possível reencontro. O sono foi mais forte, dormi.
Acordei algumas horas depois com o barulho da fechadura apalpando o batente. Pulei no susto e arrombei com força os olhos vermelhos e doídos que permaneciam lacrados até então. Entrou pela porta um homem. Trepidei com seu físico, parecido com o do fantasma. Ele trepidou o dobro ao entrar em sua casa e ver uma desconhecida semi-nua em seu sofá. Por sorte, o homem pacífico e alegre havia acabado de chegar do carnaval e ouviu minha história oferecendo-me água e pão.
Seu sorriso branco ficou mais sério e encurtou-se da face: disse-me da descrição o seu falecido irmão encaixar. Sobre a morte, reti minhas dúvidas, mas não por muito tempo, afinal, como ele havia morrido e por que fizera-me vítima de um encontro?
O irmão, recordado agora de meus traços, respondeu-me apenas sobre o antigo amor do falecido por mim. Todavia, o motivo do óbito era uma dúvida minha emudecedora de sua boca. E é até hoje...

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