sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Tentada

- Cada tentada, uma paliçada. a senhora sabe. De modo que, à moda dos reis baianos, essa morena me dança no peito. Doce flor. É uma menininha arteira! nem sabe a bagunça e a desbagunça que me faz. Velhaca. Mas eu acho que sabe. E bem demais! Cê tá irriquieta... Eu sei que te sou estranho... mas é adorada essa adorável moça... Então,  como dizia, vi-a vez primeira a desfilar na Ladeira da Saudade. Trazia uma travessa nas mãos. Baianinha. Um peixe morto morria na travessa, nas mãos, na saudade. Ai, a saia. Num grito gravei meu silêncio, para vê-la atravessar com todos os pés. Passou como quem passa ignorante, sem saber o que se passa. Deixa o cliente, outra atende-o. Ai, que saia! Saía rendada cantando a Dora e foi-se embora. No atônito quis corrê-la, dar dados ao meu amor. Pareço um desesperado, dona, eu sei... Mas sabendo-a, quem não se dissipa? Não pude não... Acontece que, perdoe o clichê, mas o lance parecia ter saído de um romance digno, um filminho lá daquelas terrinhas de Holywood, sei lá. Uma seca! Falo meio pausado. Me falta ar. Cê não me sabe feliz que faz esse copo de vinho e a sua presença, fina ! Brigado, senhora... Pois eu queria num átimo dar risadas mais ela, quase um ato legítimo – cê sabe: risadas são palavras de confiança... voltei à Ladeira da Saudade dia mais dia para tentar revogar seu nome. Mas ficou na saudade. Certeira. Acho que te lanço palavras desencontradas, pairantes no ar. Ocorre que lancei mão de pensar. Eis que falo assim. No então... Dona Leda. Posso te chamar de Lê? Escuta. Esqueci a moça nos próximos sóis. Não de outra maneira ficaria em paz. Ela evaporou da Bahia-de-Todos-os-Santos. Vivi os dias seguintes vivendo, percebe, Lê? Mas essa história da carochinha de que permaneci no escuro com o peito decalcado e fenecendo é lorota. É muito romantismo demais. Os dias me davam as alegrias normais: o baralho, a carne, o rir, o cigarrinho, o samba... Tem gente que não sei... é gente que aumenta. Gente que encontra a morte nos desencontros da vida... suada, garrida, sofrida, escarrada é. Sofrida é dessa dorzinha invisível! Mas morrer? como nos romances dignos e nos filminhos lá de holywood? não sei, não sei. mas me é tão adorada essa adorável moça... Um pitéu... Perdão! Pareço confuso. Estou. Porém, bom moço sou, viu? Pergunte ao Sansão, ao Guinho, ao Tiro-Certo e a quem bem entender. São boa gente também, apesar do que dizem as bocas falantes. A senhora tem mais desse vinhozinho? Caboclo te abençoe!  Esse devaneio de pensar começou por se dar há um tempo atrás. Nunca havia me ocorrido antes. Como pode isso comigo? Eu sempre fui cabra-home, forte, dominador. Ilusão. Parece que ela anda por aí atrás de alguma fortaleza pra se encostar. Vai raspando, raspando as bases, na sombra, pra que nem se faça ver. Tinha nome essa ilusão: Dora, que eu fui descobrir porventura um bom tempo depois, no após. Ela veio com um amigo meu, um conhecido, de fato. Ele me chegava com alegria todos os dias e dava bons tapas nas ombreiras, dizendo como vai e rindo-se-rindo com suas bafadas de cigarro. Conversávamos de sempre. Aventuras amorosas, rinhas de facas e as labutas cotidianas. É um grande conhecido, Lê, o tal Navalha-Aguda, mas daqueles que não se deve contar de menos e muito menos de-mais. Um conhecimento que se bastava e não se aprofundava, continuava inertemente constante, como o choro de um tamborim. A senhora sabe: confiança de menos nunca é demais, e repito. Nesse dia azulado, daqueles que no céu não há flocos nem tristezas, recebo o tapinha no ombro, pertinho da rua batida terrosa que vendo coco. Boaventura, cê de passeio? Ele me disse e riu-se com seu sorriso de cigarro, apoiando-o nos lábios. Rapazola meio-gordinho-meio-baixinho-meio-careca como se se espera de quem da sua idade, mas com uma certa sanha no olhar, como se portasse as cores do perigo. Não vou me perder muito descrevendo-o, depois você o veja você mesminha que te vale mais. Ele mais eu dialogamos uma conversa padrão de início e no seguinte ele chama o pedaço. Ai, que saia. Era outra, mas o 'quem' que se continha nela permanecia intacta, divinamente. Dora, apresentou-me. Parecia que andava meio perdida, zanzante, caçando nomes nas ruas. Queria a casa, mas houve coco. Dei-lhe um verde que só. O melhor da frota de meu carrinho. Não sou má pessoa... Sorrimos. Escuta, Lê, tudo bem eu te chamar de Lê, né, Lê? Desculpa a intimidade com a senhora, mas eu meio que me empolgo como nunca... Eu não sou de fraquejar das pernas e bambar do corpo com as cabrochas, mas Dora pôs-me assim. Conversei um bom tempo com ela, no querendo-e-não-querendo que ela se fosse logo, num de repente. Ai que vozinha linda. Navalha-Aguda foi por ela abordado para essa ajudança, mas como era meio perdido, me veio rogar apoio, para a minha sorte. Fomos e vimos, conversamos e sorrimos naquele finalzinho de manhã, como nunca sonhei! Apanhei-lhe os dados, gostos, humores, tristezas e deixei-a na portinha de sua casa, com um sorriso nos lábios. Fiquei num não-sei-que-faço quando a porta foi batida, olhando bobamente seu jardinzinho de cores. Com licença, amigo, o senhor não vê que conversamos? Esses fregueses nos atrapalham muito, Lê. Tudo bem a gente conversar lá fora, passeando na orla? Isso. Facilita bastante. Pois então, não quero que fiques brava comigo, sou bom moço. É que encontrei-a várias e várias vezes na alegria de tardes valsantes da Bahia. A Bahia não te lembra uma valsa? Nem a mim. Mas no momento lembrava a Das Flores, na minha mente tresloucada... Essa adorável adorada Dora cativara o coqueiro, o vendedor de cocos, as pedrinhas miúdas da praia e até as ondas bravias que urravam seu nome... Ai, essa prainha me dá inspiração e me lembra dela como nada. Eu beijei-a aqui, num montinho de areia que ficava desapercebido, com vergonha alheia. Foi um beijo romântico. Ela apontava as estrelas e me dizia querer ser uma delas. Caminhávamos tímidos, as mãos entrelaçadas... E vou te dizer, o coração nem mais sentia. É esse o momento que mais ri: no sabendo-se o momento do beijo, da obrigatoriedade do beijo e do momento de depois, quando se respira aliviado, feliz e triste pelo fim e pelo início de uma nova fase do romance. E ela queria ser a estrela, mas me era muito mais... Dona Leda, entenda, eu não sou de me apaixonar, amar, garrar, me dar. Só que estou terrivelmente nessa de viver pra sempre. Estou terrivelmente feliz. Decidimos que um papo eu teria contigo. Estou tendo. Bom moço sou, como já disse. Não te apetece isso? Quero sua filha em namoro. Sua adorada adorável cria.
           Boaventura sorriu tímido. Dona Leda, então, olhou-o com cautela, buscando ver se achava o coração do rebento nos caninos do recém-conhecido.

3 comentários:

patie disse...

Sabe, fazia muito tempo que eu não lia um conto como esse. E se tivesse lido, com certeza, teria sido escrito há muito tempo atrás. Só não entedi como vc consegue escrever assim, de um jeito que a gente começa a ler e não pára, agora, com a mesma graça que soa algo clássico e atemporal. Tem várias daquelas frases que eu leio e penso: como eu não pensei nisso antes? rs
Não sou de puxar de saco e nem de tentar agradar ninguém, mas sério, adorei. =D

KK disse...

Sabes que sou suspeita para dizer qualquer coisa, o que digo pode ter um peso de pedra ou de pluma, ser eterno ou insignificante por parecer "coisa de mâe". Me omiti em me derramar sob o poema KK, para não ser obvia, coisa que sei que não admira, mas me admirei e te admirei (mais uma vez)através de tuas linhas. Agora, ao ler este conto, não posso mais me calar. Preciso dizer que me fez sentir em paz comigo, uma sensação de que você chegará onde quiser, conquistou o poder das rédeas da tua vida e vai longe... mas não vá longe do meu amor. Te amo filho meu!!meu e do mundo!! KK

SirViniciusmj disse...

Resumindo: Genial!