Erguido o sol, Dorival já estava pronto para a rotina diária novamente, deixou a mulher com sono e febre repousando na cama, preparou o próprio café que tomou com um pão francês um pouco rijo já, não se demorou muito a apanhar seus instrumentos e partir para o negrume marítimo... Com igual ansiedade chamou por Chico e esperou o serviço dele, com as mesmas ordens de velocidade e o mesmo estalar dos dedos no couro do garoto, após o barco no mar, pagou-lhe das mesmas moedinhas de cobre e acelerou seu barquinho pelas ondas até o núcleo de seu local piscoso e secreto, voltando ao anoitecer ansiando pela janta bem merecida, mas o que encontrou na volta não foi janta nem nada, pesquisou pela geladeira e pia por uma bóia sequer, mas não foi-lhe útil nenhuma procura, ficando de mãos abanando; perguntou a mulher do paradeiro da janta, ela dormia, dessa vez mais quente e profundamente, com uma febre que esquentava o ambiente, sensibilizando qualquer médico experiente em males cruéis, ele não se abateu, preparou a própria janta, deu um beijo na mulher e foi cuidar dos peixes que estavam repousando numa caixa cheia de gelo para serem enviados assim que possível à feira, permaneceu por cerca de uma hora organizando os peixes novos com os de ontem, dividia por tamanho e tipo até ficar tudo bonito visualmente, fechou a caixa e foi para a cama dormir.
Repetiu-se a mesma cena ao dia próximo e seguinte, Dori não lhe deu a atenção, a mulher, calada, consentia e sofria no seu mais dispendioso silêncio... A mesma faca que Dori usava para rasgar o pão no centro, cerrilhava mentalmente a carne que se putrefava de Amélia enquanto Dorival a ignorava numa ignorância não proposital, mas esquecida, Amélia sentia-se abandonada, o que lhe intensificou as febres e apressava mais que depressa sua corrosão interna e externa. Não mais clamava pelo marido que saía de manhã e voltava na noite ébria , não mais, dormia apenas caladamente ao som dos passos da morte...
Certa manhã, Dori seguiu sua rotina, preparou seu café torrado, bem forte – como lhe era de agrado – e apanhou seu pão vivido para rasgar-lhe a derme e afagá-lo com manteiga, ansioso para digerí-lo e rumar ao seu mar de ouro, seu assassino mar áureo, amava a mulher, decerto, mas Dori havia manifestado em si uma incomensurável ambição pelos peixes, como que num vício de jogatina, não se podia retirá-la de sua ânima, condenava-se agora a viver e morrer de pesca, respirar pesca e até criar brânquias, se possível! Dori mudou e, não mais o mesmo, esqueceu-se pouco a pouco do único ser que lhe tem amor por aquelas redondezas, nem Chico-das-toras, nem nenhum concorrente dos mares, o único ser que lhe amava jamais tivera guelras ou anzol, sua mulher, amável mulher aquela que acompanhou Dori por todos os seus devaneios e conquistas até aquele maldito dia em que resolvera pescar vidas, o mesmo homem que lhe dera a vida nos instantes de alegria perene, tirou-lhe com anzol e isca no momento em que resolveu mudar-se à beira-mar e viver para pescar.
Dorival saiu de casa com seus petrechos básicos e fechou a porta, esquecendo-se da bem amada ardente no leito, ele chamou por Chico-das-toras, pagou-lhe bem com uma rodela de bronze e migrou para o mar, no esquecimento total da vida, concentrando-se unicamente na pesca por vir.
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